“Um discurso de impulso do conhecimento, dos valores humanos e ambientais”, entrevista a Cristiano Mangovo

In this exclusive interview with WAAU, Cristiano Mangovo opens up about the relationship between contemporary African art and the continent's diversity, his artistic work, the themes exposed in the canvas, and the impact of the pandemic on his life and in his paintings.

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Autora: Marta Lança

 

Faz sentido falar em arte contemporânea africana, tendo em conta a diversidade do continente?  

Provavelmente fala da diversidade territorial e cultural. A arte contemporânea africana enfrenta e enfrentou muitas resistências, mas consolida-se de forma continuada. Conseguiu afirmar três fatores importantes: os valores estéticos e criativos, o equilíbrio e a narrativa da sua própria História desde tempos imemoriais até à contemporaneidade. Alguns africanos aderiram aos Direitos Humanos na vertente da liberdade de género no âmbito das comunidades LGBT. A maioria das mensagens não são abstratas. Desenham-se através de uma figuração que eleva a conscientização e a reintegração da sua verdade histórica, tão distorcida no contexto colonial. A arte contemporânea tem criado um arquivo muito importante que será certamente uma fonte de inspiração para a expressão das gerações vindouras. Há temas que têm enriquecido os conteúdos debatidos no continente africano e que o mundo tem de descobrir.

Avaliação
Cortesia do Artista
Cantores da paz
Cortesia do Artista

 

É importante haver mais união entre os artistas africanos?

Os artistas africanos devem investir no seu continente, não ficar simplesmente à espera da ação dos governos. É preciso investir na educação e na sociedade. Não temos, por exemplo, um museu de arte contemporânea em Angola. Onde podem os artistas reunir-se para fazer projetos sustentados e com condições? Cada um de nós está no seu canto a apontar o dedo ao governo. Temos o exemplo do artista Guilherme Mampuya que, com o pouco que tem vendido, está a construir o Museu Mampuya. Isso incentivou-me e desafiou-me a construir também um museu. Acho que se tivéssemos artistas que pensam assim, não nos faltariam museus de arte contemporânea em Angola e no continente.  

 

Os artistas africanos tomarem iniciativa de puxar pelos outros?

Estive numa residência artística em Dakar, encontrei o mesmo espírito e isso é de facto motivo de orgulho. Trata-se do projeto do Kehinde Wiley que construiu uma grande estrutura para apoiar a produção e divulgação de artistas afrodescendentes, ligados ao continente. A maioria dos artistas provenientes da diáspora não se devem esquecer de manter o contacto com o território e de partilhar oportunidades de projetos com os que ficaram em África. Mesmo as galerias podem investir nisso.  

Give the heart to the world
Cortesia do Artista

 

Quais são, no seu entender, as principais adversidades que os artistas africanos enfrentam no seu contexto? 

Os artistas africanos enfrentam o problema de deslocação. Para viajar a partir do continente, têm de enfrentar a burocracia dos vistos e a complexidade intrincada das ligações aéreas dentro do próprio continente. Os políticos detêm passaportes diplomáticos, como embaixadores dos seus países. Os artistas também o são. É um assunto que deve ser revisto entre os países africanos e entre a África e o mundo ocidental. 

 

E que vantagens lhe parece terem?

Não vejo que vantagens temos como artistas africanos. Além de todas estas questões, para mover as nossas obras, adensam-se as dificuldades e somos continuamente taxados nas alfândegas! Faltam acordos de circulação entre países, que agilizem a mobilidade para a cultura. Não temos ninguém que tome conta de nós.      

Homem abraçando o mundo, Escultura de ferro
Cortesia do Artista
Menina com picareta
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Como descreveria o seu trabalho artístico?

O meu trabalho traduz-se na expressão de uma linguagem artística e aptidão para expressar e veicular a condição das sociedades em geral e das pessoas que gravitam ao meu redor. Faço uso de formulações antropomórficas, recorrendo à deformação nos elementos que as compõem. Seja na representação de personagens, pessoas ou animais, quase todas as formulações são, para mim, um veículo de expressão através do qual procuro apelar a uma sensibilização para a igualdade. 

 

O que procura nessa representação paralela pela arte?

É uma forma de apresentar aquilo que considero ser a verdadeira face escondida da Humanidade – uma beleza que coexiste nas “coisas” que nos são apresentadas visualmente ou historicamente a partir do continente – e de motivar a resiliência. Vislumbro a existência de todos os seres, sejam eles homens, mulheres ou animais, como um ponto de partida, como uma fonte de inspiração. Partindo dessa fonte de inspiração tenho a possibilidade de retratar, de questionar, de consciencializar, de criticar, de enaltecer, de profetizar ou de sugerir, quase sempre com um pouco de ironia. Atualmente a tecnologia permite que tenhamos acesso a muita informação sobre factos sucedidos ao redor do mundo quase em tempo real. Com base nessa potencialidade que a tecnologia oferece, como artista, constituído de corpo e alma, procuro, sem limites, explorar narrativas coloniais, pré-coloniais e pós-coloniais. 

Motivadora
Cortesia do Artista
Os Carinhosos
Cortesia do Artista

 

Que temas percorrem as suas telas?

Não trabalho só num tema, tenho tocado em múltiplos temas, que ancoro no meu processo criativo. Vejo na essência das coisas a minha maior fonte de inspiração onde, como artista, procuro mergulhar para apresentar ao público um olhar plástico, singular, particular, sobre realidades sobre as quais entendo que deve recair a nossa atenção.         

 

Estudou pintura na Faculdade de Belas Artes em Kinshasa, mas quando estuda em Estrasburgo parece alterar um pouco as suas técnicas de trabalho mais tradicionais. 

Nesse momento pus de lado os meus conhecimentos, para humildemente procurar criar um espaço dentro de mim devotado à aprendizagem duma linguagem artística nova. Naquela altura, como estudante, queria apreender novas técnicas, tendo como motor a minha curiosidade pela performance e pela cenografia urbana. Este processo acabou por vir a ter muita influência no meu trabalho, porque essencialmente me levou a quebrar algumas barreiras ligadas ao tradicionalismo académico. 

Paragem, vivendo num mundo de castigo
Cortesia do Artista
Rambo
Cortesia do Artista

 

Foi uma fase de autoconsciência e de construção da sua voz artística?

Fez-me olhar para o meu próprio trabalho de forma mais madura e com um olhar crítico. 

 

Trabalhou com o artista Tomás Etona, secretário-geral da União Nacional dos Artistas Plásticos em Angola. Essa experiência, e o trabalho pictórico e escultural de Etona, influenciou-o? 

Nesse período deparava-me quotidianamente com esculturas cujos rostos eram deformados. Não prestava especial atenção a isso, mas acabei por perceber, anos após ter saído daquele contexto, que eu também comecei a pintar rostos mutantes e em explosão. Na verdade, isso influenciou-me de forma espontânea. 

 

Em que outros sentidos o influenciou?

Lembro-me que a aprendizagem com o mestre Etona era baseada em filosofia e pintura e na exploração e experimentação de novos aspetos estéticos e cromáticos. Entre artistas chamávamos-lhes a isso a “Paleta dos mais velhos”, uma paleta rica em mistura de cores secundárias e terciárias sem a incidência exclusiva nas cores primárias. A filosofia Etonista assenta na ideia do respeito e da consideração. Defende a legitimidade da existência de diferentes perspectivas sobre uma mesma realidade. A tolerância era muito exortada naquele espaço e a minha sensibilidade intrínseca sempre me levou a observar um pouco essa ideia nos muitos ateliês de mestres artistas onde a curiosidade me tem levado.  

 

A pandemia e os confinamentos tiveram impacto no seu modo de viver e nas suas obras? 

Realmente o primeiro confinamento mexeu muito com toda a minha geração. O facto de se ser livre e de gradualmente se perder a liberdade por determinação de um grupo de cientistas fundamentados na experimentação e de um grupo de pessoas que pretendem a todo custo controlar a população mundial, é algo impactante. Ao longo desse período e sucessão de acontecimentos, o facto de ter vivido os bloqueios e de ter acompanhado notícias com relatos que apresentavam animais de várias espécies a usufruírem dos espaços exteriores livremente, levou-me a tirar conclusões sobre dúvidas que sempre me acompanharam. Como o ser humano se tem imposto como elemento dominador do meio natural, a ponto de usar os outros seres como seus prisioneiros e subalternos, para satisfação do seu próprio ego. Foi algo que despertou a minha atenção. 

 

Tem já abordado o ambiente, designadamente na exposição em Paris “Humano e a Natureza”.

Posso dizer que esse momento representou o quebrar de uma barreira, que me compeliu a pegar nas minhas tintas e a criar toda uma nova série em torno dessa narrativa, como forma de reclamar a libertação dos seres vivos: dos peixes que vivem anos a fio em aquários, aves que vivem engaioladas, animais encarcerados em zoológicos, etc… Mantenho imagens muito fortes sobre estes aspetos. Ficaram gravadas na minha memória. Uma delas diz respeito ao dia em que fui visitar um zoológico na Holanda: a certa altura, deparei-me com a cena de um elefante em lágrimas por causa da solidão. Imagino a história daquele pobre animal, imagino o seu antes e o depois daquele episódio e o que me ocorre é o sentimento e a imagem de desespero que acometeu os nossos ancestrais na época da deportação e de escravatura.  

 

Preocupa-lo que a sua mensagem chegue ao seu público. As suas obras são acessíveis a um público alargado? 

É um assunto complexo. Por vezes fico apreensivo porque o público pode não captar logo a mensagem, mas a verdade é que começo a habituar-me a ter de gerar diálogo. As obras não são necessariamente óbvias. Uma obra de arte não é artesanato.  Alegoricamente, para bem entender uma obra de arte, há que criar uma “relação amorosa” entre esta e o espectador. Com o passar do tempo, dá-se uma descodificação do lado místico do impulso criador. Entra-se na alma da peça e acaba por nascer uma grande paixão. É preciso tempo!

Responsabilidade
Cortesia do Artista
Humano e a Natureza
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Tempo para se desprender da criação para dar ao mundo?

Hoje entendo porque é que muitos artistas têm reservas em separar-se das suas obras e porque é que muitos colecionadores, mesmo em viagem, regressam em pensamentos à sua coleção, numa evocação continuada. Lembro-me em particular de um colecionador que, ao adquirir uma obra minha, me disse que a primeira vez que a observou, não só não captou a mensagem inerente, com nem gostou da peça. Ao longo do tempo, olhando regularmente para a obra, foi-se sentindo atraído a ponto de a adquirir. 

 

Como definiria a relação com a obra de arte?

A relação com uma obra de arte é semelhante a uma relação amorosa. Por isso se chamam os apreciadores de “amantes da arte”. O amor é complexo! Há relações que podem começar bem e perpetuar-se. Outras podem começar mal, mas, ao longo do tempo, sublimam-se, perpetuam-se. Cada uma das minhas obras tem o seu carácter e a sua configuração, já que toco vários temas. Não me sinto confortável a trabalhar a repetição.  

 

Sei que é difícil de sintetizar, mas que discurso perpassa as suas obras?

Igualdade de oportunidades, igualdade de género, liberdade de expressão, harmonia e equilíbrio entre o ser humano e o mundo natural, a motivação e a esperança… Um discurso de impulso do conhecimento, dos valores humanos e ambientais. Acho que cada ser humano, seja morto ou vivo, encerra em si um mundo. Os povos bantus e ibinda não acreditam na morte. Concordo e acredito até que um espírito pode inspirar. Fisicamente o Ser possui tudo que se pode encontrar na natureza (numa pedra, numa planta, no vento, na água).

 

O que ainda falta para o ser humano ser mais pleno?

Vejo o ser humano como uma garrafa vazia que deve ser preenchida, respeitosa e cautelosamente, e a matéria usada para a preencher deve ser uma que não envenene a própria garrafa, mas que lhe dê vida para que ela a possa transmitir a outrem. Se hoje continuamos a debater o tema do racismo, é porque não fomos educados para a diferença. A educação investiu bastante na componente intelectual e menos na valorização dos valores emocionais, do amor. A resiliência é a força que impele muitos de nós, assim como a esperança. É um fator muito importante, acreditar-se no amanhã e na capacitação pessoal. Quando estou em África sinto mais a crise, os conflitos entre etnias, já na Europa o assunto central é a depressão. Enganamo-nos se pensarmos que estamos bem. Temos uma visão cor-de-rosa da vida! Posso explorar o assunto da desigualdade de género, a crise ambiental, o pesar colonial ou outro qualquer, mas a causa desta desvirtude não está nos animais, nem no clima, está na falta de amor que vive dentro do ser humano. 

 

Acaba por ser um mensageiro, através da arte angolana?

É um pouco como ser-se um Soba. Há uma responsabilidade que deve ser assumida de dia e de noite, com um coração bem-disposto. Há que pesquisar, investigar, e prestar suporte a outrem. Não posso pensar apenas em mim, tenho de estender os meus olhos, os meus ouvidos e as minhas mãos aos outros. Há que saber ter autocontrolo, porque mesmo defendendo a liberdade de expressão, e assumindo ser a voz de alguns povos, entendo que se se narrar em liberdade plena, sem controlo, pode-se criar desconforto, gerar peso de consciência e problemas sociais. É preciso sabedoria e cautela para abordar determinados assuntos nos meus trabalhos, criando um equilíbrio sábio.   

 

Em termos artísticos, o que anda a preparar? 

Estou a participar numa Exposição em Bruxelas dos ACP’S (cooperação europeia com os Estados de África, das Caraíbas e do Pacífico) com a colaboração do Africa Museum, com curadoria de Nicole Kanda e de Patrício Batshikama, sobre Feminidade, Poder e Reinado na qual, juntamente com os artistas angolanos Patrício Mawete e Isabel Landama, construo um corpo de trabalho que retrata a vida de alguns ícones femininos angolanos, tal como a Rainha Nzinga Mbandi e Dona Beatriz Quimpa Vita. Este projeto vem alavancar o poder da mulher e o seu papel histórico desde o período colonial até aos nossos dias, e abordar a questão de fragmentação da nossa cultura no que toca à restituição das identidades. São muitos os projetos futuros, pois iniciei alguma investigação que, sem dúvida, vai levar-me a um longo caminho, sobre alguns assuntos que ainda não posso divulgar. Esse pequeno segredo ou silêncio faz parte da cozinha do artista que no final o mundo vai saborear.

 

Notas:

  1. Foto de destaque: Bernard Fabry. 
  2. Ler também “O que é o Sistema?, entrevista a Cristiano Mangovo”, por Alícia Gaspar, no BUALA, 07/02/2022.
  3. Cristiano nasceu em Cabinda, em 1982, e está baseado em Lisboa. Fez escultura e estudou pintura na Faculdade de Belas Artes de Kinshasa, formação que deve muito à sua mãe, e continuou o percurso artístico, trabalhando até com o artista Etona, em Angola. Em 2013, ano da crise económica em Angola, Mangovo decide emigrar para a Europa e procurar estabilidade e a internacionalização da sua carreira. Frequentou a Escola Superior das Artes Decorativas de Estrasburgo. Abriu-se para o mundo sem nunca deixar de olhar para as questões a partir de um olhar angolano. Cristiano Mangovo ganhou inúmeros prémios, entre eles o Ensa Arte – Alliance Française. As suas obras já estiveram expostas em galerias de arte contemporânea, museus, centros de arte, eventos e feiras internacionais, destaque para o Museu de Arte Africana de Belgrado (Sérvia), a Expo Milão (Itália) e a Expo Dubai e Arte Miami (EAU), Joburg Art Fair (África do Sul), AKAA Paris (França), 1-54 Contemporary African Art Fair, nas edições de Paris (França) e Londres (Reino Unido), ARCO Lisboa e Hangar – Centro de investigação Artística (Portugal) e ACP (Cooperação Europeia com os Estados de África das Caraíbas e do Pacífico (Bélgica).

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