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Autora: Marta Lança
Luz Feliz irradia uma espécie de alegria consciente. Apresenta-se como artista multidisciplinar, atriz, poeta, artivista, cineasta, e aberta a novas experiências com a arte. A reflexão existencialista, autodepreciação e sátira são, para ela, as ferramentas de humor e crítica para ser criativa. Nesta entrevista, fala-nos a partir da sua condição de mulher periférica da nova geração, que todos os dias supera as suas adversidades para poder pisar os palcos que ela vai criando. Para além de todas as mulheres inspiradoras, o seu pai foi essencial no seu encorajamento com a escola, para enfrentar a vida e o mundo que exige sempre mais das mulheres.
Porquê Luz Feliz, é mesmo o seu nome?
O meu nome é Luzolo Feliz. Feliz é o meu sobrenome. O meu pai sempre me mostrou que estudar era a coisa mais importante, dizia-me para abandonar tudo para ir à escola. Como acredito que a busca pelo conhecimento é algo libertador, associo Luz ao conhecimento. Então ficou Luz Feliz.
Os dois nomes juntos parece uma explosão de coisa luminosa.
E parece que eu inventei tudo.
Como foi trabalhar no espectáculo “O Largo da Peça” de Ana Filomena, no Elinga Teatro (em 2021)?
Trabalhar nessa peça foi uma experiência única, obviamente. Eu estava a estudar o grupo Elinga Teatro e o José Mena Abrantes, cresci a assistir ao trabalho de atores como Orlando Sérgio e Yola Viegas, na televisão, e através desta experiência tive a oportunidade de trabalhar directamente com eles. Sem contar que o texto de Ana Filomena era rico, em termos literários, belo e a produção em si digna de um texto premiado. Gostaria de manter laços e continuar a aprender com a Ana Filomena. Nesta obra pude realizar um sonho, atuar um mês sem parar fez-me acreditar que é possível considerar o teatro como um trabalho. Foi também o meu primeiro trabalho de teatro em grupo, depois de me ter tornado independente, e melhor remunerado. Não precisava de me preocupar com nada que envolvesse a produção do espetáculo, tinha toda uma equipe para cuidar de coisas, que normalmente, como artista freelancer e sem apoios tenho de fazer sozinha. Era apenas actriz.
O que distingue um teatro de monólogo e a prática de stand up comedy ou de spoken word?
Comecei a fazer stand up há pouco tempo. No princípio havia algum conflito com o spoken word, porque a expectativa das pessoas que já me conheciam do teatro era que, no spoken word, actuasse mais. Havia essa pressão. No teatro buscava mais expressão corporal, algo de dança contemporânea, ser mais expressiva; porém, no teatro não é preciso tanto texto para representar e pode-se trabalhar mais as ações físicas sem um microfone para segurar. No spoken word, geralmente, todo o texto é longo, é preciso decorar e pegar o microfone. Também me perguntava se iria ficar ridículo, se teria só de falar ou devia prestar mais atenção no texto e torná-lo mais tenso. Achava que as pessoas deviam prestar mais atenção ao texto, que é realmente diferente do teatro, apesar de serem artes relacionadas. Já no stand up comedy assumo uma postura mais natural e sinto-me livre para expressar as minhas paranoias, o que é diferente do spoken word onde quase sempre quero estar a consciencializar directamente.
A Luz Feliz é que escreve os seus textos?
Sim, para o spoken word e stand up comedy, e hoje até para teatro. No monólogo “Um dia como outro qualquer numa trajetória de mulher”, que estreei há cinco anos, tive a ideia mas não quis escrever. Não me sentia tão confortável em dizer os meus textos. Não queria que fosse só eu eu eu eu, e tinha medo de me expor. Então pedi à Fátima Fernandes para escrever o monólogo. Mas, pouco mais de um ano depois, no spoken word eu era mesmo ʺobrigadaʺ a falar o que escrevia e dar a cara. Eu consigo ver a mudança que eu vivi. Agora a minha própria vida é uma performance.
Há quanto tempo faz stand-up comedy?
Não faço há muito tempo, mas como existem poucas mulheres, e como já tenho uma carreira com a arte da palavra falada, tenho tido bastante espaço. Tenho muitas apresentações, em apenas oito meses já fiz mais de vinte apresentações.
As temáticas têm sobretudo a ver com a vida de mulheres da sua geração e histórias quotidianas?
Mulheres que são subversivas e querem provocar. A questão de ser uma jovem periférica, trazer esse sofrimento da mobilidade, de sair num sítio para o outro, questões relacionadas com a própria aceitação enquanto pessoa negra, apesar de vivermos num país de maioria negra. Também me interessam os resíduos do colonialismo na nossa sociedade.
O que compõe o recital “Entre Risos e Pensos”?
São dez textos de spoken word, intercalados com performance de stand up comedy. Uma reflexão sobre a condição da mulher principalmente periférica, e de classe média baixa, e uma visão também sobre a situação de Luanda, as dificuldades que o povo vive para ter acesso a certos serviços, também tem autorreflexões e reflexões existencialistas, alguma satirização sobre os homens e autodepreciação.
A autodepreciação é uma prática do stand up comedy, o que acha?
Acho ótimo. Porque existe um lugar onde nos querem colocar e se nós assumirmos que de fato estamos nesse lugar e estamos confortáveis, tudo bem. Eu brinco muito com isso como chamar de puta, e aí eu digo “e aí sua puta?” Acho muito interessante até para nós mesmas, para deixarmos de olhar para os problemas como problemas realmente. Talvez não sejam tão problemas assim se nós aceitarmos que são problemas.
E sente liberdade de falar o que quiser ou há uma autocensura?
Um bocado. Principalmente quando não nos preparamos e estamos no palco. É um exercício constante e um desafio: até que ponto realmente sou tão solta? Acho que estou à vontade, o stand up comedy é muito interessante para me descobrir enquanto pessoa e artista que não está preocupada com o julgamento dos outros. Fazer rir é um exercício em que nós estamos a expor as nossas feridas. Você acha uma coisa engraçada ou se constrói algo para provocar, mas se as pessoas não riem, dói. Mas é interessante. E então, paramos ou continuamos e tentamos trabalhar?
É um jogo emocional que funciona no momento?
Muito forte.
É diferente do teatro em que pode treinar aquela fala, por mais que a reação seja o silêncio. Mas também no teatro em Angola se acha que tem de fazer rir?
Há esse padrão de que o teatro faz rir, com o stand up comedy ainda é pior, mas mais compreensível. Quando digo que faço teatro já me responderam, “mas tu não és engraçada, és muito séria”. As pessoas acham que tem de fazer rir, mesmo que fale de questões sociais e críticas. Não conheciam.
Esse riso fácil… Quando vivia cá e via os grupos de teatro pensava, “mas o público estás a rir assim de coisas tão trágicas?”
E quando eu estava a apresentar o meu monólogo as pessoas estranharam, mas de alguma forma gostavam. Tive uma experiência parecida na minha performance que aconteceu aqui (Casa Brasil Angola) no Ondjango Feminista, a “Tri-Rentes”, três correntes.
Faz parte da Ondjango Feminista?
Faço parte na criação, mas abriram a inscrição para uma exposição coletiva, sobre as opressões que as mulheres vivem.
E quais são as três correntes do Tri-Rentes?
A sociedade, o Estado e a religião.
Como era essa peça?
É uma instalação, uma performance e um vídeo. Faço desenho, depois resulta numa obra plástica que é um triângulo verde em gravura. Era o desenho de um útero, nos dois ovários tenho a Bíblia e um terço, tenho a Constituição da República e tem o Código da Família depois na vagina. No canal vaginal, no colo do útero, tem uma cueca branca, um buquê de flores e uma esponja de lavar loiça. E coloco um cadeado na cueca e uma chave dentro da Bíblia. Passava um áudio que gravei com um colega, a recitar versículos bíblicos, que claramente mostram quanto a religião cristã é e sempre foi opressora com as mulheres. Não é só no Antigo Testamento, nós reproduzimos hoje em dia. Não é nada explicativo, é mesmo só a exposição desses textos, e leituras de uma parte da Constituição. E as representações, através do áudio, de momentos em que, apesar de estar escrito na Constituição e no Código da Família que todos somos iguais, nas situações reais não somos. Também tinha conversas que acontecem no dia a dia e, na última parte, a simulação de um candongueiro, algo que representa a cidade de Luanda. Uma conversa que é o resultado da ideia da religião com a ideia do Estado que, na verdade, não cumprem essas leis e como isso desagua dentro da sociedade e como reproduz essa opressão toda das mulheres.
Apesar da sociedade ser muito machista, a sua geração está a furar este patriarcado entranhado. Mas uma coisa é ter um discurso, outra é a dificuldade de enfrentar e concretizá-lo dentro de casa, nas suas famílias. Como a questão do cuidado com os outros que sempre recai mais na mulher. Sente a dificuldade de conciliar com a carreira?
Sentia mais no princípio. Era um choque, não saber como é se posicionar em relação a certos comportamentos dentro de casa, e por vezes me sentir culpada. Existe muito essa questão da culpa, principalmente num ambiente familiar.
Uma herança cristã…
E para mulheres, né? Porque os homens nunca têm culpa. Por exemplo, a minha mãe adoecia muito e eu ficava lá com meus pais e minhas irmãs, já os irmãos saiam. Ficou cada vez mais difícil porque os meus irmãos mais velhos saíram de casa, fiquei com o que vem antes de mim e o que vem depois, era conflituoso. Eles realmente achavam que podem deixar tudo para que eu faça. Não sabia se devia servir totalmente o meu pai e permitir que isso continue, ou se me devia posicionar. Os homens nunca têm esse peso. A minha mãe ficava doente e eu é que tinha que ficar em casa, isso não era questionado aos homens. É você que tem de ficar em casa a cuidar da mãe. Ou então ser questionada: vai sair, vai lá nas suas atividades? Existia muito esse conflito, depois do meu pai morrer também, vi culpabilização, como menina tinha que cuidar mais do meu pai. Tem sempre esse peso tanto que eu estava a me sentir culpada.
Tem de se fazer um esforço duplo de educar os irmãos, os companheiros e às vezes os professores.
Felizmente desfiz-me disso sim, mesmo quando vivia com a família, por conta disso, eu queria o mínimo desses detalhes na minha cabeça. É muito complicado, você tentar educar pessoas adultas. Reeducar o professor, os colegas de trabalho? E há pessoas que querem realmente te provocar, para ver a tua reação. Isso mexe muito com a saúde mental e emocional. Acho que prefiro continuar a me educar, e talvez com a minha educação, e com o meu posicionamento, consiga dar a volta.
Já tem um lugar de fala com influência nos outros. Pode aproveitar muito a oportunidade da sua exposição pública. O que acha que está a mudar da geração anterior para a vossa?
Desde há seis anos, quando começámos a nos assumir como feministas e o movimento feminista surgiu (Ondjango Feminista, e outros) mudou muito… Nessa altura ter um posicionamento enquanto mulher no espaço público era algo escandaloso. Eu era a mais nova quando o movimento surgia, hoje em dia vejo meninas mais novas do que eu a tomarem posições sobre a sua própria vida. Não necessariamente em relação ao espaço público, mas tomando posições sobre a própria vida. Depois de eu ter saído de casa, vi várias meninas saírem de casa. Pelo menos dentro do meu círculo, que às vezes ficamos muito numa bolha. Mas antes não via. Várias meninas estão a lutar para conquistar os seus espaços. Acho isso importante, porque contamina. Uma vai se posicionar, vamos nos inspirando, há um intercâmbio de inspirações. Elas têm anseios de casar, mas vejo que já não é só esse foco, elas realmente querem se desenvolver como pessoas e buscar algo para lá disso.
Hoje em dia os jovens são mais desempoeirados na sexualidade, no género, melhor preparados para fazer a revolução no público e privado.
Não pode ser apenas um discurso público, mas sermos capazes de levar isso realmente nas nossas vidas e nas nossas decisões. Acho que é a próxima fase para uma pessoa feminista, posicionar-se e pôr em prática e também saber — acho que isso é um ensinamento de vida não apenas para quem é feminista, não apenas para a ideologia — os momentos certos de agir. Saber ter flexibilidade. Não necessariamente deixar-se levar mas saber como vou fazer para não bater tanto de frente, mas ainda assim conseguir os meus objetivos. Estar bem comigo, estar bem dentro dessa relação no coletivo, dentro dessa vida que não só apenas de quem a vive. Porque existe essa relação. É um exercício necessário, sabermos lidar com os nossos egos, para estarmos bem connosco mesmas também. É um caminho que, feliz ou infelizmente, é muito difícil de fazer coletivamente.
Pode haver toda uma rede de apoio…
Mas é uma construção dolorosa e solitária, que as pessoas só sendo honestas realmente vão conseguir alcançar.
Em que fase está a sua carreira? Já consegue ser dona do seu trabalho, das suas condições, ser mais seletiva?
Acho que comecei já assim. Agora já conheço mais pessoas e é mais fácil, mas eu comecei assim, pedi a alguém que eu conhecia para escrever a minha ideia, chamei um professor, paguei o táxi para ele assistir ao ensaio, fui procurar espaço, porque queria organizar uma atividade para arrecadar. Tinha um grupo com algumas colegas de saúde pública que queríamos doar sopa para os meninos de rua, achei que era uma oportunidade, aproveitar a atividade para arrecadar fundos. Aí seriam duas desculpas para as pessoas irem e eu não precisava de pagar o espaço, pedi para alguém fazer o panfleto, chamei as pessoas. Então acho que, desde o momento que decidi que queria fazer teatro, comecei realmente a fazer. Já comecei me posicionando. Tanto que as pessoas têm um bocado de medo de me convidar para coisas.
Pela sua independência? Por aquilo que pode dizer?
Porque eu sou alguém que já se posicionou. Tomei essa atitude de começar a fazer as coisas. Então a pessoa que faz as coisas não está à espera que alguém faça por ela, ou não está dependendo. Ainda mais mulher jovem…
Mulher jovem e periférica.
É um bocado assustador e as pessoas sabem que eu tenho um posicionamento e o feminismo também dá medo.
As mulheres batalham muito para conseguir gerir as várias frentes de luta da vida. Não há aquela resignação imediata ao papel de cuidadora. Algumas jovens querem conquistar os seus sonhos e serem felizes como querem: sozinhas, acompanhadas. A abertura mental é inquestionável, não lhe parece? Isso é devido a mais informação?
Pelo movimento social, e pelos grupos que surgiram. De época em época sopram ventos de mudança. O movimento feminista expressa-se em Angola em 2014, o movimento LGBT, os jovens ativistas, os movimentos pan-africanistas que questionam a identidade. Há mais informação com as redes sociais. Acho que o que está em falta é as pessoas realmente estudarem. Há mais gente a estudar, não apenas dentro da academia, mas esse conhecimento não chega. Não temos base nem para nos defendermos nem para nos conhecermos. Tudo é uma etapa. Da fase do conhecimento abruto, depois vamos filtrando e vamos nos transformando, desconstruindo e construindo.
Mas há coisas a acontecer, não?
É preciso mexermo-nos para algo acontecer. Quando alguém se mexe alguma coisa muda. Um colega disse-me “a minha mãe não acredita que eu te conheço”, e “as coisas que você fala é como se fosse algo que está a nos curar”. Eu achei muito bonito, se eu não me mexesse não tocaria, não teria essa essa reação. Pode parecer mínima, essa coisa, pode parecer que externamente não mudou nada, mas mudou contigo e te tornou mais forte para fazer mais vezes, para as pessoas não se assustarem tanto com aquilo. Desde o momento que oito mulheres decidiram reunir-se para criar o feminismo, já mudou alguma coisa. Só pelo fato de ter acontecido, já chama a atenção. Aqueles jovens, o movimento de ativistas terem feito uma manifestação, mudou alguma coisa. Hoje em dia quem fala sobre política, as condições de género, a divisão sexual do trabalho, quem fala sobre cabelo natural, quem fala sobre pele negra, quem questiona até o João Lourenço, já não é visto como frustrado, mas há alguns anos atrás era. Era a pessoa mais frustrada do mundo, era louco. Sim, realmente as coisas estão a mudar.
Fala-se como a arte influencia o modo de vida?
Sim, e sobre ser autêntico realmente, aceitar as próprias lutas e se posicionar no mundo e ser realmente quem você é, sem ficar refém dos padrões faz-nos bem, faz-nos crescer e viver plenamente. Neste meio, apesar de ser mulher artista, onde já me falaram várias vezes “você é estranha, é esquisita” —coisa que já não me importa, entendo que talvez não sejam as pessoas com quem quero debater — já estarem a falar sobre essas coisas, faz-me perceber que as coisas estão a mudar.
A arma do humor é poderosa?
É, em quase todos os sentidos, no de matarmos os nossos tabus e de não levarmos nada tão sagrado, tanto para mim como para o público. E rirmos das nossas situações para mim que sempre levei as coisas tão a sério, aprendi a desconstruir-me, a não levar as coisas a sério. Fazer rir também pode ser libertador.
Também se imagina a fazer peças, a encenar?
Já fiz. Sim. Quero muito.
Deseja manter a independência?
Por enquanto, acho que não compensa fazer teatro de modo exclusivo com os grupos, quase não pagam, e eu só vivo da arte. Então acho que essa postura de independência é o melhor.
O probono não serve quando se vive como freelancer… Exigir pagamento pelo trabalho artístico vai ajudar outras pessoas que não têm ferramentas, a criar uma tabela de honorários, a profissionalizar o sector.
Quando você se apresenta como artivista, eu é que decido qual é o meu activismo, o que que eu tenho que fazer ou não fazer só por favor. Fazer arte politizada é uma forma de me posicionar, mas eu é que devo decidir o que vou fazer, onde e como vou fazer. Aqui já nem me chamam até porque ficam com medo.
As pessoas acharem que a arte está fora do mundo e da sobrevivência, o que reproduz a ideia de que só as elites com dinheiro é que podem fazer arte.
Como é que se vê daqui a cinco, dez anos em termos profissionais? Gostaria de fazer carreira lá fora?
Principalmente gostava de fazer formações fora. Gostaria muito de fazer uma pós-graduação, um mestrado em Artes Cénicas. Tenho projetos bem específicos, e algumas curtas-metragens. Gostaria muito de trabalhar com produção, além de ser artista, gostaria de abrir espaço para outros artistas. “Tinha uma escola” lá no bairro com aulas para crianças da comunidade, fazíamos alfabetização, arte, cidadania. Então, o meu sonho é ter uma escola dessas.
Uma escola de arte?
Dar continuidade ao projeto Nkula, uma escola comunitária com ensino de artes e cidadania.
Também queria trabalhar em cinema?
Já estou de alguma forma, gostaria de produzir também, relacionar a minha formação com a arte, estou a aprender desenho também, tudo tem a ver com tudo. Talvez eu não precise só viver da arte, posso também trabalhar com saúde pública e economia, gestão de saúde e relacionar com a arte. Abrir um novo mercado para a promoção de saúde e relacionar com curtas-metragens, por exemplo.
Imagina-se a viver fora?
Realmente eu não me imagino fora. Já saí duas vezes daqui. O meu pai trabalhava na TAAG e fui duas vezes ao Brasil. Gostava de ter formação em teatro por lá, tenho uma relação muito próxima com o Brasil, tenho amigos lá.
Quem é que são as suas referências no stand up comedy?
A brasileira Bruna Louise, gosto muito dela, ela conta também sobre o trajeto dela. Também faz piadas auto-depreciativas, é incrível. Gosto muito do Afonso Padilha, também brasileiro, muito talentoso.
E a Porta dos Fundos?
Também acho interessante por ser também mais cinematográfica, nos sketches. A sátira me interessa muito. Eles tocam temas como a heterossexualidade e dizem que os hétero estão extintos, essa brincadeira que eles fazem ao repensar as normalidades, é muito interessante.
Sentiu-se bem no Brasil?
Vi as coisas básicas lá. Apesar que você estar numa favela já não falta água, não falta luz, o transporte passa. Nunca tinha ido lá na minha vida, mas saí às vinte e duas e tal e andei no centro da cidade. Já aqui em Luanda, estou na cidade onde nasci, cresci e tenho dificuldade de andar depois das 20h. Isso influencia muito na qualidade de vida.
A facilidade de mobilidade?
Quando morava no Bita a mobilidade era mais difícil. Nem o táxi privado entrava lá, por vezes os amigos que têm carro nem querem entrar no teu bairro. Parecem coisas mínimas, mas são complexas. Agora já posso sair da ilha, o espetáculo termina às vinte e uma, vinte e duas, e consigo voltar.
Para além das suas questões autobiográficas, retrata a mulher periférica nas suas histórias de vida.
É uma forma de chamar a atenção das pessoas para essas questões que nós vemos e não nos deixam. Não são necessariamente coisas que eu vivi, mas que posso viver, e vejo pessoas à minha volta a viver. Por exemplo, a minha primeira curta-metragem “Mulheres do meu bairro”. São coisas que acontecem que eu sempre tive medo de passar por viver num bairro periférico. Um dos meus maiores medos era engravidar na adolescência, ou engravidar e perder o mínimo de condições que tinha, que os meus pais me davam. Sempre existe a ameaça da gravidez, inclusive o medo da relação sexual porque pode surgir uma gravidez, mais até do que uma DTS. É cultural. Tanto que quando começamos a menstruar dizem “Se você encostar no ónibus fica grávida”. Sempre tive esse receio. Saí do Cazenga lá para os vinte anos, vi vizinhas da minha idade ficarem grávidas, isso sempre foi um medo. Depois ajudou o conhecimento que tenho sobre feminismo e sobre a questão das mulheres periféricas. Felizmente tive um pai presente que me possibilitou estudar, e sempre esteve lá, e uma mãe também assim super batalhadora, muito atrevida, muito inspiradora e que sempre lutou muito. De alguma forma sinto-me privilegiada. No meio em que cresci, na família sou a única pessoa que está no ensino superior. Sou essa pessoa privilegiada.
Não devia ser um privilégio, devia ser o mínimo. Ainda teve que passar por tanta dificuldade…. É uma mistura de sentido de oportunidade, ter uma pequena possibilidade e conseguir agarrar.
Mas eu tinha um pai que que pagava também a escola.
Acha que isso é um dos fatores que pode fazer mesmo a diferença na vida de uma pessoa?
Acho que sim. Não acho, tenho a certeza. Ter um pai faz toda a diferença. As mães fazem muito aqui no nosso país. As mães são todas sempre assim muito fortes, fazem tudo pelas famílias, mas acho que o que falta são realmente pais presentes. A Bíblia e a religião dizem que as mulheres é que servem para ajudar os homens. Eu acho que faltam homens para ajudarem as mulheres, mesmo.
Como foi a sua infância?
Os meus pais são do Zaire, do Mbanza Congo. Nasci no município no Kilamba Kiaxi, Luanda, onde vivi até aos 4 e depois no Cazenga, até aos vinte anos. Ainda vivi alguns anos no Bita, no município de Belas, próximo do Kilamba. Fiz o ensino primário e secundário no Cazenga e um dos cursos superiores, de Saúde Pública, Economia, Gestão de saúde, na Universidade Católica de Angola. E atualmente faço o último ano da licenciatura em Teatro, na Faculdade de Artes, Universidade Luanda, no Kilamba.
É tudo muito longe para si?
Sim, mas estou a aguentar. É o último ano.
Como é que surgiu essa vontade de fazer teatro?
Vi teatro pela primeira vez aos onze anos. Gostei muito, não me saía da cabeça, quis logo fazer, ficava a criar ideias, escrevia histórias. No Liceu Óscar Ribas havia um grupo de teatro, comecei a ensaiar, quando entrei na Universidade parei. Depois apareceu um amigo de infância a dizer que queria abrir uma sala de teatro lá no bairro, eu já estava receosa, porque é muito complicado a arte, ainda mais teatro, tem pouca aderência, as pessoas não gostam de pagar. Principalmente nas zonas periféricas onde na verdade estão preocupadas em trabalhar, comer e reproduzir. Mas como eu tinha ganho uma bolsa, e o meu pai ajudava a pagar os estudos, quis arriscar, porque também já tinha esse desejo, de ter uma sala de teatro, fazer teatro, investir nisso. Então, fizemos essa sociedade.
Como foi essa experiência?
Os métodos de teatro nas zonas periféricas, em relação aos ensaios e aprendizagem sobre teatro, deixavam-me desconfortável porque há a tendência de bater ou de usar palavras agressivas. Não concordava com aquilo. Uma das minhas condições era que isso parasse, e se colocasse mais meninas no grupo. Eu já era feminista e eram essas as minhas condições. Mas não tinha tanto controlo das coisas. Depois saímos do Cazenga. Fomos viver para o Bita, onde a minha mãe comprou um terreno construiu uma casinha. Tinha-me inscrito para o curso de bacharelado na Universidade Católica que eram só três anos, mas aqui em Angola só se valoriza a licenciatura ou mestrado. Devia continuar para servir de alguma forma a família, e eu sou praticamente a única pessoa que fez ensino superior, e dizem que ʺcom grandes poderes grandes responsabilidadesʺ. Então eu vivi um momento complicado porque não sabia se dava para continuar para fazer equivalência ou ficava só pelo bacharelato, que não vale quase nada, Não serviria para nada tanto investimento dos pais para isso. Sem contar que já estava decepcionada com o curso, não apenas por descobrir que não poderia ser mais licenciatura, mas porque os estágios me deixavam desmotivada, não era nada daquilo que eu esperava, não me revia nessa coisa de ficar no escritório a ver papéis. Decidi então inscrever-me na faculdade de Teatro, permitiram que fizesse a equivalência de dois anos para a economia gestão de saúde para fazer licenciatura, e com a bolsa, achei que poderia gerir as duas faculdades. Só que foi muito difícil, um ano muito perturbador porque eu vivia no Bita, estudava na Universidade Católica de Angola que ficava no Palanca. Saíamos às 19h15, quase não tinha do Palanca até ao Bita, vivia numa casa super distante da estrada, tinha de andar muito pelas 19, 20 horas, num bairro super deserto. Chegava em casa às 21h, frustrada da vida. Sem contar que também era cansativo querer ser artista e quase todas as atividades acontecerem na cidade e sair às 22 horas. Foi muito complicado.
Nunca desmotivou?
Existem sempre momentos de desmotivação… Mas de alguma forma busca-se razões para continuar. Era mais complicado ainda porque tinha de ir à escola, ao estágio, havia dias em que acordava chorando, não sabia para onde ia, mas sabia que não podia desistir. Não sei porque me submeti a isso na minha cabeça. Mas já passou!
Esses sacrifícios dão ainda mais razão para ter chegado aqui a fazer o que faz agora, valorizando cada conquista.
Como é o curso?
Gosto do curso, mas a escola, infelizmente não apresenta as condições apropriadas. Quando eu entrei no estágio não contei que estava a fazer dois cursos ao mesmo tempo, só falei do estágio que era para que me percebessem que se faltasse alguma coisa, me ajudassem, me entendessem. Mas foi um problema enorme, diziam-me para desistir. Na verdade, quando entrei para lá deixei o grupo de teatro no Cazenga não só pela distância, mas porque não era apenas aquilo que eu queria mostrar na arte, eu queria usar a arte como meio para consciencializar. Quando entro na escola, já pesquisava o que eu queria fazer como artista, fazer artivismo, então nos exercícios tentava implementar algumas coisas.
Qual é o enfoque teatral do curso?
Tem especialização em atuação. Acho que se aprende sempre alguma coisa, é melhor do que ficar em casa e estudar sozinha. O enfoque é mais teatro universal europeu. Está-se agora a tentar levar para uma visão mais contemporânea e com enfoco no teatro ritual, especificamente o africano, com quatro colegas finalistas, que fazem o Bimphadi, um projeto que aborda a descolonização da arte. É muito interessante, inclusive trouxeram pesquisadores do Brasil.
Com que teatro se identifica?
Sempre me identifiquei com o teatro contemporâneo que dá mais abertura, e sair do convencional, acho que até o próprio monólogo também de alguma forma impulsiona para que eu faça teatro contemporâneo. Diria que comecei a fazer monólogo por alguma desidentificação com o grupo, queria fazer as minhas coisas e, sem meios e sendo artista independente, é mais viável não depender de mais pessoas para fazer ou para realizar para acontecer. E uma peça com apenas um actor ou actriz reduz os custos e riscos de produção.
Nota:
- Foto de destaque: Marta Lança