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Autora: Marta Lança
Nascida em 1980 em Luanda, a artista visual vive e trabalha com fotografia entre Londres e Lisboa. Nesta conversa falámos sobre alguns dos seus projetos relacionados com a cultura do cabelo, a maternidade, as tecnologias de controlo, os rituais fúnebres, e ficámos a conhecer o seu percurso e modo de estar na arte e na vida.
Como surge a cultura visual e a fotografia na sua vida?
Sempre fui uma pessoa bastante visual e cinéfila. Quando era miúda adorava ver filmes. Para mim foi um modo de conhecer o mundo e de quebrar fronteiras. Desde sempre me foi transmitida a cultura popular, nos anos noventa, e dos anos dois mil. Portanto, toda a minha experiência e cultura visual foram muito a partir de filmes. Sempre me senti muito atraída por histórias, especialmente pelas visuais.
Nunca quis trabalhar noutras linguagens artísticas além da fotografia?
Quando era mais nova fiz teatro na escola. Comecei com o Pedro Saavedra, que também tinha estudado na minha escola, e quando estava no Conservatório decidiu fazer um projeto lá. Foi a partir de aí que comecei a fazer teatro, algo de que sempre tinha gostado. Fizemos vários projetos juntos, incluindo de dança. Sempre gostei muito do movimento e da expressão corporal, que também acaba por ter influência visual.
A sua experiência de vida impulsionou-a na fotografia?
Honestamente considero que, principalmente na minha adolescência, não tinha um pensamento nem muito crítico nem muito estruturado. Por isso não tinha as ferramentas necessárias para contextualizar e compreender na totalidade muitas das experiências pelas quais passei. Entender, por exemplo, a influência da cultura portuguesa nessas experiências foi algo que aconteceu muito mais tarde. Já com 26 anos, comecei a experimentar fotografia, trabalhei como assistente de um fotógrafo inglês que vivia e trabalhava em Portugal. Fotografava coisas espontâneas e nada pensadas. Foi esse caminho que decidi percorrer.
Quando e como sai de Portugal com destino à “Europa”?
Em 2010 saí de Portugal e fui para Paris, onde acabei por ficar dois meses com a minha irmã e o meu irmão, que já lá viviam, depois fui para a Grécia e para a Inglaterra. No entanto, durante este período de mudança não mexi muito na fotografia, embora tenha observado muito e estado em contacto com vários fotógrafos. As experiências com a fotografia foram quase sempre comerciais, não de modo artístico ou com pensamento crítico. Tudo isto informou a minha prática. Foi ao sair de Atenas e a dirigir-me para Inglaterra que formei o plano de tirar lá o curso de fotografia. Já tinha quase 30 anos e não tinha feito a Faculdade em Portugal, por isso pareceu-me indicado estudar algo de que realmente gostasse. Inglaterra pareceu-me ser um país ideal em termos de oferta cultural. Não me arrependo, embora tenha havido algumas desilusões. Defini uma expectativa a nível de educação, e embora tenha gostado e tenha sido bastante positivo, tive algumas críticas. Podia ter sido muito melhor. Mas de facto tive mais acesso a artistas do que se tivesse estudado em Portugal. Mais networking, ligações, colaborações. Se tivesse feito o meu curso em Portugal tinha ficado na mesma bolha e zona de conforto.
Em Inglaterra tem outro tipo de interlocutor. Sente familiaridade com os seus assuntos, por exemplo com o cabelo?
A minha faculdade era muito internacional e por isso havia bastante familiaridade. Havia muitos europeus e não só ingleses. Lembro-me que o meu projeto da Kindumba começou primeiramente como uma pesquisa que mais tarde se tornou um livro. Falei muito com os meus colegas e a familiaridade foi bastante grande.
O Kindumba foi o seu projeto mais marcante nesse contexto?
Sim, foi o meu grande projeto. Comecei a trabalhar nele no meu segundo ano como trabalho de pesquisa e com o nome de Hair Culture. Foi uma combinação de entrevistas, bem mais documental do que propriamente o objeto artístico do que que agora está presente. Falei com colegas de faculdade, falei com pessoas da minha comunidade que moram aqui, principalmente em Brixton onde a cultura do cabelo está muito presente, falei com empresários, que têm cabeleireiros e apostam também numa vertente educativa em relação ao cabelo. E muitas vezes, sem eu dizer nada da minha experiência, encontrei muitas semelhanças. Então percebi que este contexto que vivi em Portugal é muito partilhado por países que têm um passado colonial. O facto de ter vivido em países diferentes, fora de Portugal, informou muito as minhas experiências. Em Paris, por exemplo, uma das primeiras coisas que vi foram publicidades no metro, mas em relação a pessoas negras e com produtos de cabelo que não são europeus. Em Portugal não se vê isso. Lembro-me quando era adolescente e queria ir ao cabeleireiro, só havia em sítios muito específicos e underground. Isso também se vai refletir na forma como as pessoas eram fechadas quanto ao seu próprio cabelo. Era tudo muito camuflado, coberto, tabu. O meu primeiro contacto com o estrangeiro foi contrário. Havia mais diversidade e orgulho. Ser capaz de ir ao supermercado e haver seções designadas para o cabelo africano. Como tudo era mais mainstream também não existia a adversidade com pessoas com cabelos característicos da nossa cultura como, por exemplo, cornrows (tranças). E havia muita mais representação na televisão e em todos os meios mediáticos. Tendo chegado a Paris em 2011 e tendo logo todo este contacto cultural, comecei a desenvolver o projeto Kindumba em 2013, e tive a ideia de falar sobre o cabelo. Quando fui morar para a Grécia deparei-me outra vez com o retroceder de mentalidades em relação à experiência negra. Concluí que a experiência europeia é muito dura para quem não é branco. Passei por situações muito desagradáveis devido ao facto de as mulheres negras serem vistas como prostitutas, o que é muito discriminatório.
Em que medida o cabelo é um assunto pertinente ligado à interculturalidade? Em cidades africanas, que tiveram colonialismo português, há muito a fazer nessa área. Em Luanda o Movimento dos Estudantes Angolanos (MEA) denunciou muitos casos de descriminação nas escolas sobre o cabelo dos alunos (alguns proibidos de frequentar a escola). Muitas mulheres têm pudor de andar com o cabelo natural, devido aos padrões de beleza ocidentalizados, que gera preconceito e falta de autoestima. Por outro lado, a gigante indústria de cabelo. O cabelo ainda está por descolonizar?
Isso tem muito a ver com dinâmicas do poder. O poder é branco ou de quem seja branco com cabelo liso. E mesmo em países com elites e poder negras a matriz é a mesma. A minha investigação demonstra essa relação entre o poder, o sucesso, o dinheiro e o poder económico e social. Se uma mulher quer ser vista como bem-sucedida e com estatuto social é esse o padrão. O cabelo representa mais do que ser bonito, está para além de algo que seja só supérfluo e estético.
Como se situa a narração no seu trabalho nas várias camadas deste assunto: políticas, culturais, económicas?
O que quis fazer no final do meu projeto foi realmente celebrar e trabalhar o orgulho relacionado com o cabelo, seja ele natural, estilizado ou até mesmo uma peruca. Quis fazer uma celebração da expressividade, das pessoas poderem ser elas próprias. Para mim foi mais valioso do que estar a dizer às pessoas o que é que elas têm de usar e priorizar uma opção acima de outras. Existe reflexão sobre o que nos leva a escolher certa opção, como por exemplo usar o cabelo natural, por isso procurei fotografar pessoas com cabelos diferentes. Acho que esta discussão vai continuar a ser relevante enquanto existirem situações de discriminação, como por exemplo de cabelo natural africano não ser visto como algo que possa ser usado em um ambiente profissional. É quase a mesma coisa que dizer que o negro não é profissional. E ainda mais perturbador é, de facto, este tipo de pensamento estar presente em África. E no continente americano, é raro encontrar uma mulher que abrace as suas ondas, as brasileiras, por exemplo quase todas alisam o cabelo. A ideia de que o feminino é o cabelo comprido e liso. A indústria do cabelo ganha biliões com a venda deste padrão. Esta indústria está a fazer dinheiro sobre os corpos negros sem qualquer consideração pelas consequências que tudo isto tem para a saúde, como é o exemplo dos relaxantes capilares.
E os cremes branqueadores altamente cancerígenos… (tão usados no Congo, por exemplo).
Lembro-me de ser adolescente e ficar perplexa com a quantidade de pessoas no cabeleireiro ao saber que se trata de uma comunidade que não tem muito dinheiro. Na televisão nunca se vê as pessoas como nós e que usem os nossos penteados. Essa falta de representação vai influenciar como nos vemos. Quis então procurar a razão para tudo isto e a verdade é que é já uma herança.
A sua abordagem vai mais pela resistência, o cabelo como forma de afirmação e de celebração. Contraria a imagem da opressão dos cabelos nas sociedades africanas, não é?
Nas sociedades africanas pré-coloniais o cabelo era uma forma de expressar imensas coisas. Eram formas tradicionais de expressar a tua religião, a tua tribo, se eras casada… Era toda uma linguagem codificada que foi perdida.
No caso das pessoas escravizadas e despossuídas, o cabelo era um elemento diferenciador, por vezes permitia saber de onde é que a pessoa vinha, a que etnia pertencia, que língua falava.
O cabelo era e é ainda hoje algo muito importante. Especialmente em relação à experiência negra. As pessoas, quando foram escravizadas, e foram levadas do continente deixaram de ter acesso a certos utensílios e ingredientes que usavam no cabelo. Com o passar das gerações ficaram perdidos. As pessoas tiveram de se adaptar ao que tinham acesso. Algo que considero quando viajo é se terei acesso a determinados produtos. Acho que seria difícil para mim viver em países onde a cultura afro não está tão presente, seria preciso um nível maior de preparação e logística.
No projeto Love to Remember traz-nos os rituais do luto em comunidade, a partir de funerais em Londres. Fez-me pensar nos combas em Angola: o modo de prolongar a memória do defunto. Em Portugal o funeral é formal, a pessoa morre e já estamos a enterrá-la. É muito individualista, um sofrimento privado. Achei muito interessante perceber como em culturas afrodiaspóricas se valoriza a ideia de viver e estar junto na hora da morte.
Foi exatamente essa ideia que encontrei. A experiência funerária em Portugal é realmente individualista, parece que estamos a ser julgadas se tivermos mais expressividade sobre a dor, é tudo muito frio, aqui é exatamente o contrário. As pessoas se tiverem de chorar e gritar para exprimir a sua dor, fazem-no. Depois existe toda a ideia de comunidade, não é só a família que está no funeral, vêm pessoas do bairro também. Fui a vários funerais no sul de Londres especialmente de comunidades africanas e todos eram assim. Fiz um funeral de uma família ganense e foram todos vestidos com roupas tradicionais. Anteriormente eu já tinha feito um funeral para a mesma família e as caras que começo a encontrar acabam por ser familiares, por um lado é triste, por outro também há uma cumplicidade entre nós. Fui convidada para fazer fotografias como evento. Em vez de fazer casamentos faço de funerais. Eles é que me encomendaram o trabalho. Fui convidada por um colega da faculdade que já trabalhava nisto, no início tive algumas dúvidas. Não achei que fosse ser bem recebida, já que era uma situação muito privada, mas decidi experimentar e ver como corria. Fui muito bem recebida, as pessoas deixaram-me muito à vontade e queriam mesmo que eu estivesse lá. Porque as fotografias colocam-me a fazer parte dessa recordação. Depois havia a questão do vídeo também, durante o COVID soube de funerais que se fizeram através de Zoom. Tive assim acesso a muitas questões e acontecimentos. Funerais são quase como casamentos, após as devidas cerimónias fúnebres, aluga-se um espaço dedicado à memória, onde há música, comida, rezas.
As combas em Angola chegam a durar uma semana. Chega-se a alugar um espaço com decoração, aparecem parentes distantes. Pode ser uma festa, come-se, bebe-se, faz-se negócios, novos casamentos, reencontros. A vida continua. O encontro em memória de alguém que morreu promove outras coisas. Na Europa as pessoas têm de estar mais contidas nas emoções, não manifestam a dor para fora. Em tempos, chorava-se sem pudor, como carpideiras, e o luto era uma marca social muito forte, fica-se anos a vestir de preto.
Na cultura europeia existem as toxicidades de confrontares a tua parte emocional, porque não deves ser emocional e descontrolado. Penso que estamos a reverter um bocadinho nisso e estamos mais à vontade com as nossas emoções, o que é bom. Consegui encontrar estas semelhanças de que lhe estava a falar em funerais cabo-verdianos em Lisboa. Fui a um funeral desse tipo e as pessoas estavam todas na rua a comerem cachupa e havia música. No Love to Remember reencontrei tudo isto. Aqui (em Inglaterra) existe um grande foco no “remember”, os convidados do funeral deixam mensagens sobre a pessoa defunta. E através destas pequenas mensagens comecei a conhecer muito mais sobre várias partes destas culturas como, por exemplo, a windrush generation. Aquela geração pós Segunda Guerra Mundial que foi convidada para reconstruir o país. Muitas das pessoas estavam bem, tinham educação, mas tinham o sentido de patriótico e responderam à chamada de virem para este país e fazerem parte de algo que é maior do que do que eles próprios. Chegaram ao país com aquela expectativa na cabeça, que depois foi dizimada pelo clima, muito frio, muito cinzento as pessoas um bocado miseráveis e sobretudo pela discriminação. Eram descriminações muito fortes como, por exemplo, ser impossível arrendar casas, desemprego… A famosa frase “No Irish, no Dogs, no Black”. Mas mesmo assim persistiram e fundaram comunidades enormes e foram grandes contribuidores para a cultura Inglesa.
Em 2013 foi introduzida a “Hostile Environment policy”, uma política adoptada pelo governo de coligação Conservador e Liberal Democrático para limitar a imigração e deportar pessoas sem documentos do país e que afetou desproporcionalmente a comunidade negra porque esta tende a ser vista como emigrante/ilegal.
As pessoas que vieram das Caraíbas parte da “geração Windrush” vieram como cidadãos britânicos e o seu estatuto – supostamente – nunca estaria em causa. Muitos deles nunca acompanharam o nível de administração que, de outro modo, se espera de um imigrante para a Grã-Bretanha.
Quando lhes foram demandadas documentação, descobriram que não tinham e por isso muitas perderam trabalho, foram destituídas, perderam o acesso à saúde ou até deportadas… Nada disto foi pensado ou o publico informado. Quando comecei a fotografar estes funerais, estava a acontecer tudo isto. Depois do Brexit, os cidadãos europeus começaram a reportar experiências idênticas a que estas comunidades tiveram com o Home office.
Aqui em Inglaterra existe também uma liberdade religiosa que não se vê em Portugal, nunca vi nenhuma espécie de julgamento nem nada do género em relação a práticas religiosas. Isto interessa-me no sentido de ver as diferenças como é que isso influencia o nosso pensamento a nível de sociedade. Há aqui diferenças culturais, na Inglaterra a entrada para os museus são na maioria grátis e as igrejas – Westminster ou St.Paul Cathedral – não são. Em França acontece exatamente o oposto, isto apresenta um contraste de paradigmas socioculturais muito interessante. Diz muito.
As igrejas protestantes e do Reino Universal, têm forte presença em África. Um dos atrativos é o apoio e a celebração: cantar para expurgar.
Acho que uma das razões pelas quais a igreja brasileira está a ganhar pontos é a forma de expressão. Há uma cultura brasileira que vem de África e por isso há muito essa semelhança.
As pessoas não se sentem apoiadas, sem um bom sistema de saúde ou de educação, na falência do Estado social procuram na igreja essa forma comunitária de auxílio. Mas há muita gente a roubar em nome da fé.
Também acontece com a igreja católica, de qualquer modo. Mas é verdade há pessoas a fazer fortunas imensas com as pessoas que quererem acreditar em algo. Em África fazem muito dinheiro porque África tem um ancestral de capacidade de acreditar em alguma coisa.
Falemos do Black White Algorithym que reflete sobre as tecnologias biométricas e de vigilância. Lembrei-me do filme “O preconceito codificado”, que refere as questões raciais, em que o padrão da imagem corresponde a um certo tipo de cidadão e o algoritmo monta um preconceito contra as pessoas negras.
Eu comecei por fotografar as pessoas em ambiente de estúdio e depois selecionei, aquilo a que chamamos mugshot, a fotografia tipo passe, basicamente a parte que é usada para reconhecimento. Tem muito a ver com vigilância e controlo. Depois, com essa parte que recortei foi convertê-la em algo chamado ASCII CODE… e o que ele faz é reverter a imagem para uma linguagem binária, neste caso, zero e um. E, se reparar, quanto mais escura a pessoa for, menos se reconhece. Foi uma forma de falar sobre essa situação em que o algoritmo já discrimina e não está treinado para reconhecer pessoas negras. E traduzir isto para uma sociedade em que cada vez somos mais vigiados. Toda a gente tem Facebook. Toda a gente divulga no Instagram. E se, por exemplo, pensarmos que o facto de ter seguro para o carro está associado a este programa biométrico, pode aqui desenvolver-se um problema. Observamos a passagem de práticas discriminatórias para a era tecnológica. As tecnologias mudam e todos estes problemas vão ser passados de uma plataforma para outra. Em vez de estarmos a realmente a resolver estes problemas podemos estar a piorar e fazer com que se espalhem mais e que tragam mais desigualdade. Daí a minha atenção em relação às tecnologias e como é que elas continuam a favorecer esse projeto de desumanização.
Que vai tendo várias expressões como as tecnologias militarizadas de controlo de pessoas nas fronteiras.
Todas as pessoas que são marginalizadas têm a mesma experiência ao passar a fronteira, mesmo com o passaporte válido e tudo em ordem há sempre expectativa.
Nem imagino o que é sentir isso na pele de todas as vezes que se vai viajar.
Acontece sempre alguma coisa. O único sítio onde nunca senti isso foi aqui (em Inglaterra). Os outros países causam-me muita ansiedade, o que ajuda o preconceito de que realmente se passa alguma coisa de errado.
Essa técnica de converter num código binário, depois exposto, deu origem a alguma discussão? Estava integrado nalgum projeto?
Fiz este projeto no primeiro ano do meu mestrado em Digital Media na Goldsmith University e explorei vários programas que permitiam transformar a imagem em arte.
Este projeto só expus aqui na Universidade Christ Church Canterbury, no entanto, é um projeto de que falo bastante. No meio de tantas crises como o COVID, inflação etc, acho que ainda não está a ser tomada a atenção devida e tenho medo de que seja um impacto passageiro, que não dê tempo às pessoas de reivindicarem. A mudança tem vindo a acontecer, mas mesmo assim tem de falar e reflectir. Como é que estas tecnologias realmente influenciam as nossas vidas? E existem muitos tipos de discriminação que nem sequer são considerados como é o caso do código postal, e isto causa problemas de acesso graves a vários tipos de serviços ou privilégios.
No projeto Mother Untitled aborda o complexo papel de ser mãe, a ansiedade e a monotonia da vida doméstica, os medos da situação em que um ser depende inteiramente de nós.
Atualmente há mais expectativa em relação à mulher, porque a mulher é mãe e também deve ter ambição profissional. Tudo isto provoca mais stress não apenas pela necessidade, mas porque a mulher também que ser independente, ser mãe e ser mulher. Querem ser reconhecidas pela sociedade. Acho que ainda há uma ideia muito romântica do que é ser mãe e das expetativas todas. Não se fala o suficiente do isolamento e dos medos pelos quais uma mãe passa. A mulher perde-se um pouco no processo de maternidade, durante os primeiros anos não há espaço para mais nada. Outro problema dos tempos modernos é a perda da comunidade, como havia anteriormente em que realmente uma vila ajudava a criar a criança, tornando a experiência da mãe menos isolada.
Agora para ter apoio é preciso ter dinheiro. Em Inglaterra as creches são públicas ou paga-se muito?
Paga-se imenso especialmente nas idades mais novas. A partir dos três anos o pre-school (pré-primária) é gratuito para toda a gente. Mas são 30 horas no máximo por semana, o que dá cinco a seis horas por dia. Os pais têm de estar disponíveis ou então pagam-se essas horas extra. E isto sem considerar o preço de uma creche que são 1200 euros no mínimo. Em Inglaterra fala-se sempre da parte económica, mas não se considera a parte social. E se a mulher quiser continuar a trabalhar?
Com o nascimento do vosso filho não pensou voltar para Portugal?
Aqui o sistema escolar é muito complicado, eu já tinha falado com uma amiga minha que é professora e a criança tem de se preparar independentemente. Quando o nosso filho nasceu estávamos no COVID, por isso era impensável abandonar a Inglaterra. Depois, a nível profissional, aqui há um campo de trabalho muito mais significante a nível monetário, além do facto a que me recuso ir para Portugal e depender da economia portuguesa. Os salários são muito muito baixos.
As pessoas estão voltadas para dentro e não há tantas redes de ajuda. Nesta série da Maternidade trabalha com o pink e os tecidos, quase uma associação kitsch à ideia de vida doméstica, mulheres aprisionadas numa redoma maternal, a tentar libertar-se.
São seis figuras diferentes na performance, repetidas de modo a fazerem um efeito tipo espelho. Quis brincar com esse conceito de repetição que pessoalmente é algo que me custa, a monotonia custa-me, gosto mais de espontaneidade. O meu trabalho acontece a maior parte das vezes por casualidade e eu gosto de deixar as coisas fluírem. No caso deste projeto específico, queria trazer esta forma aprisionada, essa caixa em que estamos colocadas, que representa as expectativas e a realidade de como as coisas são. E claro que no final do dia as crianças valem a pena, mas não teria de ser um processo tão complicado. E falo também do processo de dar à luz, que para mim foi bastante traumático.
A dureza de “ser mãe” é abafada precisamente com as coisas bonitas de uma criança a crescer. Choca o que ainda se passa em Angola, a mortalidade do parto e infantil, a falta de recursos, etc.
Dar à luz é realmente uma das coisas mais perigosas que uma mulher pode fazer. Obviamente não queremos pensar nisto quando tomamos a decisão, mas acho que se devia pensar principalmente na forma como as pessoas são tratadas. Felizmente há tecnologia que torna o processo muito menos fatal para a mulher, mas não deixa de ser um momento traumático para muitas mães. Depois existem imensas ideias que vão sendo transmitidas como, por exemplo, a de um parto natural e sem analgésicos ser melhor. A ideia de que o nosso corpo foi desenhado para isso, mas depende muito de mulher para mulher. Há mulheres que têm muita sorte e não precisam quase de ajuda, e outras que precisam mesmo de muita ajuda. Eu fui induzida e acabei por ter de passar por uma cesariana de urgência, e afirmo com toda a certeza que se fosse hoje teria marcado desde logo uma cesariana. No entanto há mulheres que acham cesarianas umas coisas horríveis. Eu acho que o que está aqui em questão é a escolha das pessoas. É uma violência contra as mulheres toda a vida estarem a ser incutidas que há uma maneira correta de passar pelo parto. Outra grande questão é a amamentação. Eu não consegui amamentar, embora fosse uma coisa que gostava de ter feito porque sei que é muito benéfico para a saúde do bebe. Existe ligação com o amamentar obviamente, mas não é por não o fazer que não ame e meu filho e não tenhamos uma relação.
No texto deste trabalho refere uma espécie de ansiedade que a partir daí não nos larga, as dúvidas se estamos a fazer bem ou mal. Nunca ficamos totalmente descansadas, mas vai melhorando. Isso também é uma aprendizagem de nós próprias, porque somos novas pessoas neste processo.
Uma coisa que ter um filho me fez recordar foi a minha própria infância, lembrei-me de todas as fases. Valorizas também quem cuidou de ti, mal ou bem, com todos os erros. Proporcionou-se muito também em termos de perceber as pessoas, a sociedade. Comecei a ver as pessoas todas como crianças, crianças grandes. Já todos passamos por isso e muitos traumas que nós temos são devidos às crianças que fomos e como nos trataram. Tornei-me muito mais empática e muito menos crítica. Existe sempre uma grande ansiedade em relação ao ser pequeno que tem de crescer e leva tempo, estamos a falar fisicamente, depois temos aquela parte toda psicológica também. É extremamente exaustivo quando, simultaneamente, tens de te preocupar contigo. E depois a ansiedade relacionada com o teu próprio ser como mulher. Ser mãe acaba de prejudicar uma parte profissional principalmente se não tens muita ajuda. E a verdade é que ter filhos limita muito a vida da mulher e não teria de ser assim. A mulher do século XXI ainda não tem direito a desenvolver-se pessoalmente a nível do que quer fazer com a sua vida, a partir do momento que é mãe.
Há toda uma pressão social para que o trabalho das mulheres seja sobretudo o da reprodução e de cuidar da sociedade produtiva, e produzir também.
Sem dúvida que existe uma pressão enorme, especialmente quando a mulher atinge uma certa idade.
É quase ontológico a maternidade ter esse pendor de dificuldade acrescida na vida das mulheres.
Questionei-me sobre o que poderia fazer a sociedade ser diferente e a verdade é que tudo mudaria se os homens tivessem atitudes diferentes. Conheço a história de Freddy McConnell um homem transgénero (nasceu com corpo biologicamente feminino) que tomou a decisão de não retirar o útero e de ter um filho, e achei incrível a experiência que ele vai poder transmitir à sua criança. Ele também fez um filme íntimo e comovente sobre essa experiência, desde a decisão de ter um bebé, durante a gravidez e do parto.
Isto é uma mudança tão grande e que pode ser benéfica para a nossa sociedade.
Para a maior parte da população mundial os cuidados não são considerados trabalho. E, no entanto, cuidar da casa, e dos outros, o trabalho reprodutivo devia ser super acarinhado, implica imenso tempo e dedicação, leva muitas horas por dia. É muito injusto não termos ajuda do Estado nem reconhecimento.
O que ainda me magoa são comentários a afirmar que isto é o meu trabalho e que é assim que têm de ser as coisas.
Ou podia ser, desde que houvesse reconhecimento e que não tivesse de ser tão exaustivo tudo para podermos trabalhar noutras coisas e ter cabeça para outras coisas. É um esmagamento, um cansaço ancestral.
Revê-se na categoria de artista africana?
Eu sou uma artista. O meu trabalho foca-se muito na experiência negra na diáspora porque esse é o meu contexto mas, ao mesmo tempo, não gosto de limitar a minha criatividade e não me fecho dentro de nenhuma caixa. Eu gosto dessa abertura para falar coisas que me interessam e que valem a pena trazer à superfície para as pessoas ouvirem uma conversa sobre esse tema. Nasci em África, mas fui embora de Angola muito pequenina e não voltei nunca mais. Um dia, quando voltar, será durante um grande período porque parte da minha família é de lá. Quero fazer arte que é coincidente com o continente africano.
Pode ajudar à representatividade de artistas que não eram tão conhecidos e de uma certa inscrição. Nos anos noventa os artistas nunca iriam referir as suas origens africanas porque não era isso que tinha interesse em Portugal. Faziam mais questão de dizer que eram europeus e internacionais do que propriamente ir buscar as origens, suas ou dos pais.
Neste momento a arte africana é moda e é importante para que se possa criar um mercado. O que me incomoda um pouco é saber que tenho de seguir as modas para entrar no dito comboio. Eu quero ser fiel a mim mesma e quero que a minha arte também o seja. Sou uma artista angolana e o meu trabalho fala sobre a minha experiência na Europa, sobre o que vivenciei e observei. Mas há muitas mais que quero explorar no futuro e quero deixar as coisas em aberto.