“Uma espécie de madureza que fui trabalhando incessantemente”, entrevista a Nú Barreto

Nú Barreto é o artista guineense com a maior circulação e presença internacional. O desenho, a pintura e a fotografia têm sido a sua linguagem desde cedo.

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Autora: Marta Lança

Nasceu em 1966 no norte da Guiné-Bissau e vive em Paris desde 1989. É o artista guineense com mais circulação e implantação internacional. Desde cedo que o desenho, a pintura e a fotografia foram a sua linguagem. Estudou na École Nationale des Métiers de Image. Procura mostrar ao mundo a riqueza e a humanidade de África. 

Considera que a sua obra ser vista como arte africana ou arte afro-diaspórica é um nicho ou uma oportunidade? Há uma instrumentalização das origens dos artistas ou é irrelevante para o seu trabalho?

É uma situação muito delicada, e a cada um a sua posição. Haverá certamente os que entendem que seria bom colocá-los neste nicho onde ficariam e bem. Para mim seria mais coerente, mais leal à minha ideologia, dizer que sou indiferente a isso. Eu faço o meu percurso. Considero-me um artista e sou africano. Não posso extrair essa riqueza da minha vida. Não escolhi, mas se tivesse que escolher talvez escolhesse ter nascido na Guiné. Sou e serei africano até ao fim da minha vida, embora viva há mais tempo fora da minha Guiné, isso sendo um factor relevante em certos aspectos. Não me apetece extrair a minha africanidade, mas as pessoas são livres de analisarem como entendem, a prática ou a corrente na qual estamos envolvidos. Sou indiferente. Não considero boa ideia uma classificação que menospreza ou reduz os artistas africanos. No fundo, todos os artistas, sejam pintores, escritores, poetas, dramaturgos, dançarinos, descrevem o conteúdo do mundo, a humanidade, o que têm à volta, o que os envolve. Deveria ser a nossa preocupação, enquanto seres. 

É um diálogo com a existência e com o nosso tempo. 

Sim, e depende da capacidade criativa de cada um. Uns criam coisas com mais força, outros menos, uns são mais talentosos que os outros. Cada um tem a sua capacidade. Mas dentro disso, o que deveríamos salvaguardar, e que seria mais importante, tanto para ditos artistas africanos, é todos – europeus, americanos, asiáticos, africanos – narrarmos a desgraça do mal dos Seres. Não vejo essa classificação como uma barreira, partilhamos o mesmo universo. Sei que vou continuar a escrever incessantemente as minha amarguras da humanidade.

 

Através da sua obra o nome da Guiné-Bissau circula, desperta curiosidade pelo seu contexto. Confere uma perspectiva ao país diferente da percepção muito limitativa dos telejornais. Quando vou à Guiné-Bissau e observo as suas culturas, pergunto porque na Europa só se fala da Guiné a propósito do narcotráfico e dos golpes de Estado.

Estou inteiramente de acordo consigo. É certo que, quando participo numa exposição, levo comigo o nome da Guiné. Mas há uma coisa perversa que vem logo ao encontro do que invocou, a Guiné ligada à política e outras coisas. Sempre acabo por apanhar por tabela com essas perguntas da parte dos jornalistas.

Ossements (États Désunis D’Afrique), 2018.
© Galerie Nathalie Obadia
Déracinée (États Désunis D’Afrique), 2018.
© Galerie Nathalie Obadia

Como se tivesse de responder pelo estado do seu país?

Um jornalista pede uma entrevista comigo, as coisas são organizadas e, mal começa a entrevista, vem logo à tona o narcotráfico ou as instabilidades políticas. Confesso que é desagradável. 

 

Como tem sido a sua estratégia de resposta? 

No início não sabia lidar muito bem com isso, depois fui obrigado a ser muito directo com a pessoa dizendo “ou falamos de cultura ou falamos de política e narcotráfico”. Se é sobre os últimos, falta-me a capacidade, não sou especialista na matéria. Da cultura vou aprendendo, mas o resto é de mera importância, se bem que as políticas ideais e leais tendem a dar passos com a Arte. Digo até que o artista é um político falhado, assim como o político é um artista falhado. Não é fácil construir e dirigir uma sociedade, mas também não faz sentido que essa sociedade seja um campo político de vinganças, onde só o mal é exibido. A política é uma nobre causa. Leva-se o nome da Guiné, onde temos mulheres e homens competentes, uma terra maravilhosa, a cultura é impressionante. Mas a outra parte também existe. Todos nós sabemos, globalmente falando, a situação está como está, não se pode esconder, não se consegue acatar projetos interessantes, não há um plano valioso para desenvolver a parte cultural. Acabaram por esquecer e abandonar a cultura. Vontades existem, mas a lacuna é dramática! Ficamos nesse paradoxo de um país com artistas, onde cada um se “desenrasca” como pode. Também é perverso, quando a Guiné é referida, ressaltar o peso da situação atual, o narcotráfico e a política. As pessoas influentes dizem: “Ah, é um país complicado e falhado, trabalhar com ele, não, deixa estar”, e dão oportunidades a outros. Já tive essa experiência.

 

Como foi o início do seu percurso artístico? Como vai para a pintura, como lhe surge a visualidade e a vontade de traduzir as suas ideias de forma pictórica?

O mundo das imagens começou muito cedo. O amor pelos desenhos nasceu na minha infância. Sempre desenhei. Obviamente fui jogando futebol e outras coisas mas, na minha vida, o desenho sempre foi algo superior a tudo. Tive um irmão que também desenhava perfeitamente, mas era uma pessoa que não estava interessada nisso. Foi uma coincidência, é natural. Aprendi com ele, mas também sozinho, através de bandas desenhadas, copiando desenhos das páginas, aperfeiçoando aos poucos. Tínhamos um grupo de amigos na escola primária, fazíamos trocas de bandas desenhadas, eu tinha mais dificuldade em respeitar o deadline da entrega dos livros, porque aproveitava para desenhar. Esse amor foi crescendo. Continuei desenhando e houve períodos em que não me interessava que as pessoas soubessem da minha paixão, ficava no meu cantinho com as minhas coisas. Foi evoluindo. Estando na Guiné, não havia nenhuma escola de pintura ou de belas artes. Se houvesse, depois de deixar o liceu, provavelmente teria seguido imediatamente um curso em belas-artes. Mas não existia, aliás, continua inexistente!

Sentido Proibido/Sens Interdit, 2019.
© Galerie Nathalie Obadia
Miroir, 2019.
© Galerie Nathalie Obadia

Os professores não o incentivavam na escola secundária?

Absolutamente nada. Naquela altura, estávamos com o socialismo, consequências da guerra fria. A Guiné optou pelo Socialismo, o que é óbvio e compreensível. Sendo professores muito jovens, devido ao sistema do ensino/ Ministério da Educação na época, a escassez da sensibilidade e conhecimentos eram vulneráveis. Não houve determinação da parte dos governos exigindo a instauração do ensino das artes. As artes foram sofrendo e a lacuna é abissal.

 

Os professores eram pessoas muito novas, aquela ideia de Amílcar Cabral, quem sabe ler que ensine os outros.

‘Os que sabem devem ensinar os que não sabem’. Sim, essa lógica ficou, mas o individualismo falou mais alto que o colectivismo. O país confrontava-se com uma situação financeira caótica. Portanto, os professores não incentivavam porque não tinham capacidade nem usufruíram desses ensinos anteriormente. Não se pode exigir nada a quem nada tem. A solução, para os que podiam, era uma bolsa de estudos no estrangeiro. Os meus professores ensinavam desenhos geométricos. Era tudo. Nunca tive aquela motivação de professor dizendo: “olha, tens capacidade, então podes fazer isso ou aquilo”. Não tive essa sorte. Um guineense de origem portuguesa chamado Augusto Trigo dava aulas de pintura a uns jovens que descobriu e foi remediando quanto possível. Trigo ficou na Guiné, depois do golpe de estado de 1980 passou a viver em Portugal. Anos depois tive contato e acesso a ele, frequentando aleatoriamente o seu atelier. É um artista importante e precursor que deixou à sua terra natal um conjunto de obras de elevada importância para a nossa cultura. A maioria delas estão numa decadência e vulnerabilidade comprometidas, num silêncio absurdo. Tudo isso são consequências derivadas do passado e presente inadequado.

 

O facto de na Guiné não haver mercado artístico, afeta a circulação de artistas? 

Num país sem Centro Cultural Nacional, sem museu e sem galeria, é extremamente complexo estabelecer qualquer diálogo.

Como aconteceu a sua partida para França?

Chegou a altura de sair da Guiné, mas com o objectivo de estudar engenharia informática e regressar. Vim para França em 1989, era um jovem de 22 anos. Engraçado porque não tinha ideia de ficar. Aconteceram vários inesperados no meu percurso. Fui-me adaptando a cada instante da minha vida, aos altos e baixos que envolvem a vivência.

 

Incidentes…

Faleceu o meu irmão em 1987, em Lisboa. Era o meu único irmão, a minha vida complicou-se. Doravante tinha de ser independente, mais maduro, ocupar-me de mim e da minha mãe. Parei as atividades artísticas que não eram também algo volumoso. Deixei de desenhar, as aguarelas que fazia já não me interessavam, fui andando e esquecendo esse mundo. Curiosamente, nos últimos anos da minha estadia na Guiné, comecei a interessar-me pela fotografia. Tinha um tio aqui em França (já falecido), que insistiu com a minha mãe que eu, sendo jovem, não podia continuar na Guiné sem estudar, sem fazer nada, devia dar outro impulso à minha vida. Essas são as razões que me trouxeram a França. Paulatinamente, foi aparecendo o bichinho da arte e fui encontrando-o, num país, que é um palco de culturas.

 

E vai-se aproximando do mundo da arte?

Estava muito apressado em terminar os estudos para poder regressar à Guiné. Mas não foi como eu tinha pensado e desenhado. Três anos depois tive de anunciar ao meu tio que já não estava interessado em engenharia informática e que queria era estudar e fazer fotografia. Aí as coisas complicaram. Tem de se compreender o contexto e o modo de pensar da geração do meu tio em relação à cultura e arte. A arte é realmente muito complicada, a sua insegurança cria apreensões. Seja como for, hoje vejo a arte de um outro prisma, e compreendo as apreensões que, por vezes, são manifestadas violentamente. Os pais não tinham essa tendência de abençoar as ideias dos filhos que optavam pela via artística. É uma história de resiliência ou persistência. 

Le Jeu, 2021.
© Galerie Nathalie Obadia
Rejected!, 2021.
© Galerie Nathalie Obadia

Ou seja, arte fazia-se no tempo livre, nunca como fonte de sobrevivência. 

Não vou ocultar a dificuldade da vida de artista, é um facto que é extremamente árdua, convém saber desde o início os sacrifícios que irrigam a caminhada artística. 

 

São raríssimas as pessoas que conseguem viver da arte. Como é que o Nú chega à profissionalização pela arte? 

Retomei os desenhos numa perspectiva desencorajadora e num horizonte fusco. Decidi continuar a estudar fotografia, a partir daí assumi a minha escolha e determinação. Não continuando os estudos iniciais (engenharia informática), deveria encontrar uma alternativa para a minha sobrevivência e liberdade. A cisão com o meu tio operou-se e expulsou-me de casa. Compreendo a decisão, muito embora naquela altura, era o alvo frágil a encontrar uma alternativa, evitando o pior. Fui seguindo o meu destino, trabalhando como assistente de fotógrafo de moda. Continuei a pintar, a fotografar, posso fazer ambas mas, a dada altura, cheguei à conclusão que não tinha a rede que fornecia trabalhos, precisava de trabalhar. É um sistema muito relacional, necessitamos de vínculos sólidos que nos garantam um emprego delicado. Contava com reduzidos laços amigáveis nesse mundo profissional. Questionei a necessidade da minha existência como artista, decidi continuar a fotografar, mas tinha que alargar a minha prática. Desenhando com mais frequência, avançando com o tempo, fiz uma primeira exposição graças à minha irmã portuguesa, chamada Maria Filomena Canadas. Pertencendo a uma associação de filhos de portugueses nascidos em França, organizaram um encontro cultural no qual fui convidado a participar numa exposição cuja temática é literatura. Nunca mais parei e continuo a trabalhar até agora. A profissionalização veio anos depois. Já assente e bem fincado no mundo das artes, foram surgindo oportunidades confirmando a minha modesta contribuição, com altos e baixos, até chegar onde estou, ou seja, representado por uma prestigiosa galeria, já há cinco anos, a Galerie Nathalie Obadia. Acho que são frutos duma obstinação natural e uma convicção sólida, de que nascemos para ser o que somos.

 

Conseguiu desde logo suscitar interesse pela sua obra?

As primeiras exposições foram logo encorajadoras. Diziam-me que tinha algo a explorar, que devia persistir e nunca abandonar. Fui assim ouvindo e realizando aos poucos, as coisas levaram o tempo que deviam levar. Sempre venceu a paciência. Não tinha chaves para abrir certas portas. E também acho que o destino é assim, só o destino sabe do destino. Fui andando com a minha arte durante anos, subindo de nível, mudando a forma de trabalhar, aprendendo outras coisas, construindo a minha carreira com os meios que tinha. Aprendi a não perder o foco do essencial, pois a arte é um mundo ambíguo e sensível.  

 

Foi-se reinventando, procurando outras influências, não se fixou numa fórmula nem numa técnica sempre igual. 

Sim. A monotonia é a pior forma de vida. Saturo-me logo a fazer a mesma coisa. Felizmente vou reinventando formas de trabalhar, atualmente estou muito entre desenhos, pinturas e colagens. São personagens que fui criando com o tempo, com as minhas experiências, das minhas andanças, ou experiências das outras pessoas que fui vendo com o tempo, analisando, considerando, fazendo um estudo profundo sobre o trabalho. Acho que temos tudo à volta para criarmos e fazermos coisas interessantes. Não gosto de usar a expressão “coisas lindas”. A arte encaixa com o essencial, não com a beleza. Sendo essencial, ela por si cria a beleza. 

Bestial Desconfinado, 2021.
© Galerie Nathalie Obadia
Fraternidade, 2021.
© Galerie Nathalie Obadia

A sua arte é feita de imperfeições e das várias camadas complexas da humanidade. Há figuras de solidão e do cotidiano, nota-se uma origem na banda desenhada e na crónica. Pode falar um pouco sobre o Drawing Room, aquelas figuras, em vermelho de sangue desenhado com símbolos quotidianos?

Uma obra da arte não se deve preocupar com a beleza. Uma obra de arte bem acabada cria a sua própria beleza. quando está completa, não precisa de mais nada. Quando o essencial é posto, cria a sua própria beleza. Estou convencido de que não é preciso acrescentar nenhum toque de fantasia. Sempre que colocamos algo que não deveríamos, fica uma coisa too much. No Drawing room, são personagens que nasceram com o tempo. Uma espécie de madureza que fui trabalhando incessantemente. Daí nasceram as imperfeições, a cor dorida. A cor vermelha e a cor preta. São as duas cores preferenciais desenhando essas personagens, porque são cores que atraem a visão e chamam atenção com mais facilidade. Não obstante as deformações morfológicas que envolvem as personagens. 

 

Fazem um contraste incrível. 

Esse contraste chama a atenção. Permitem que a pessoa fique parada em frente à obra, para ver e tentar ler, compreender o que se passa dentro da escritura, porque cada obra é uma escritura. Foi o nascimento dessas personagens e a cor avermelhada que agora me caracterizam bastante. Confesso que são árduos a ver porque a morfologia não é respeitada.

 

Têm muito de sofrimento e de desespero.

Realmente. Há uma condensação dentro dessas personagens. Faço esse exercício de imperfeição invertendo os membros: os pés no lugar das mãos, as mãos no lugar dos pés. Temos muito a aprender com essas personagens, porque envolvem vários aspectos do funcionamento da sociedade e de nós mesmos, da imperfeição e da expressão que elas levam. O projeto foi apresentado em Lisboa através da Arte Periférica, com quem trabalhava na altura. Foi uma experiência muito interessante, tivemos um retorno positivo e ao mesmo tempo inquietante, conforme a leitura das pessoas.

 

Pode falar sobre a peça o La Source, integrada na série das bandeiras Estados Desunidos de África?

La Source é o subtítulo da série das bandeiras que nasceram num contexto que já vem de 2009. Todos nós sabemos que se fala mais negativamente do que positivamente de África, quando não é bem assim a realidade. Basta aprofundarmos a história, sem um esforço crucial em frequentar grandes bibliotecas e materiais de pesquisa, para saber que o continente africano teve um período extremamente forte, aliás sempre teve, em riquezas intelectuais importantíssimas para a humanidade. São menções ocultadas. Mas isto é uma oportunidade pensada para que África seja sempre dependente e maldita do ponto de vista de conhecimento, percepcionada como um continente atrasado, etc. Então achei que valia a pena falar sobre a riqueza intelectual africana, e nasceu essa ideia de criar a bandeira como se fosse a fonte da sabedoria. África é o berço da humanidade, onde existem tantos valores. Nada melhor do que a literatura para constituir a obra de escritores africanos. A ideia é mostrar o conhecimento que se tende a esquecer por razões geopolíticos e outras superioridades, mas o continente africano tem efetivamente muita riqueza e lição a dar à humanidade.

Traços Diário 1, 2020.
© Galerie Nathalie Obadia
Instinct Animal, 2019.
© Galerie Nathalie Obadia

Em La Source aparecem livros de muitos pensadores e líderes africanos, a maior parte assassinados, como Patrice Lumumba, Amílcar Cabral…

É o que acontece normalmente, e sem processos jurídicos.

 

Sonhadores e homens da luta que foram eliminados e não conseguiram ver os seus países a florescer, naquilo que planearam. Quando olho para este manancial de referências literárias e políticas penso também numa África em potência sempre a ser travada e boicotada. Tem essa dimensão também?

Primeiramente, considero que é conscientemente o desafio entre a utopia e a determinação. Não é um cego desafio, defender causas justas. Aderir a uma causa dessa envergadura, exige um poder de determinação supranatural. Nem todos podem. Dentro dessa estrutura geopolítica, o continente africano deve ser sempre mal visto ou mal apresentado. É assim forjada no ocidente a percepção, quando a realidade é outra. Nesta obra vêm-se livros que tiveram relevância ou destaque. Muitas pessoas deram a vida ao continente africano, é preciso reconhecê-las e honrá-las. O Amílcar Cabral não precisava de ser um guerrilheiro, não precisava de ser o presidente e um dos fundadores do PAIGC. Tinha uma vida bem arrumada, era engenheiro agrónomo e levava uma vida modesta. Complicar a sua vida com inúmeros constrangimentos, alinhar-se com a sua ideologia e objectivo de salvar a sua história, saldar a sua divida e viver a sua época, sendo africano, como dizia. Optou por viver o seu sonho e levar uma vida árdua. Noutros continentes, apareceram personagens dessas dimensões, dando orgulho à determinação da emancipação dos povos. Espero que os africanos reconheçam, louvem e apreciem de forma melhor, todos os esforços dessas vidas ceifadas, que deram o máximo para o continente e isto é uma das razões para introduzir modestamente livros merecidos. 

 

Na série Traços, Diário (2020), um mosaico de pequenas pinturas, como memórias em suporte de cartão, notamos uma relação com o confinamento do Covid 19.

Na pandemia tínhamos de reinventar formas de trabalhar para poder responder à monotonia do tempo. São quarenta e duas peças e a terceira e a última mostrei na exposição Europa Oxalá, selecionada pelo curador António Pinto Ribeiro. Um artista que se preocupa com a situação do mundo, não só do meu umbigo, da minha origem. O que interligava as várias fases dos diários era a preocupação com a liberdade, metaforicamente, não só a questão do espaço confinado, mas a liberdade, movimento noutros sentidos. Como a liberdade pode ser constrangida. Andava a recuperar coisas, porque tinha que encontrar formas de desenhar, fiz colagens de papéis que tinha no meu ateliê, suportes para poder exercer. 

 

Quais são as suas maiores referências e inspirações como artista?

William Kentridge, Paula Rego, Francis Bacon, De Kooning, Lucian Freud, Jenny Savile. A Paula Rego foi uma inquietação, a cereja no topo do bolo, em termos plásticos há um contraste muito forte no trabalho das personagens da Paulo Rego. Analisando profundamente, vê-se que é um traço mais robusto. Diria que a morfologia dessas personagens está mais próxima do trabalho considerado de “um artista africano”. Infelizmente nunca nos encontrámos para poder falar com ela sobre esse assunto. Gosto muito das temáticas que abordou ligadas ao mundo do circo. Todo a criação é impressionante.

 

Na entrevista que dá ao Sumaila Djaló no BUALA refere que tem pena de não ter ainda exposto convenientemente na Guiné. 

Não existe nenhuma iniciativa de divulgação do meu trabalho na Guiné, o facto de viver na diáspora e a lacuna de conhecimento. Quero realmente fazer coisas, mas o impasse é gigantesco e as dificuldades são demasiadas, vejo que o intelectual não tem nenhum valor. Havemos de encontrar outra forma, outra oportunidade para que as coisas possam acontecer, se calhar não tem de passar necessariamente pelas instituições. Estou com vontade de expor na minha terra, mas não de qualquer maneira. Se não for também ficará para a história. Como digo: Só o destino sabe do destino.

 

Nota: 

Foto de destaque: ©TCARON

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