“Naturalizar África no meio artístico”, entrevista a Paula Nascimento

A artista e curadora independente angolana Paula Nascimento faz o balanço do programa "Africa em Foco”, da Arco Lisboa 2023. Já é a 4ª edição em que se responsabiliza por inscrever artistas e galerias com produção em África nesta Feira.

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Autora: Marta Lança

 

A artista e curadora independente angolana Paula Nascimento faz o balanço do programa “Africa em Foco”, da Arco Lisboa 2023. Já é a 4ª edição em que se responsabiliza por inscrever artistas e galerias com produção em África nesta Feira. 

 

Qual o seu critério para escolher estes artistas? Como foi ativada a linha curatorial?

O desafio de ser curadora no contexto de uma feira como a Arco, e principalmente de galerias para uma feira, é o facto de estarmos num espaço comercial em que há vários fatores a ter em conta. Claro que há artistas específicos que eu gostaria de ter presente, artistas de geografias específicas, mas essencialmente é preciso tentar equilibrar a presença das galerias e a parte comercial. Nesse sentido, evito fazer um gesto curatorial como se estivesse a montar uma exposição. A ideia é sempre trabalhar África de forma expandida, naturalizando a presença destas galerias e artistas. A partir daí, convido determinadas galerias interessadas em participar, após um diálogo ao longo do tempo. As galerias que estão no continente são galerias médias porque, também, Portugal não é um mercado muito conhecido, nem é mercado para galerias com foco na arte contemporânea africana. Mais facilmente estas galerias participam em feiras específicas e em outros mercados tipo Londres e Paris. Então, há uma conversa prévia e algumas condições para que as galerias estejam cá. Por outro lado, a ideia é sempre desmistificar e desconstruir a questão de África. Se, num primeiro ano, o foco eram galerias que estavam no continente, à medida que o programa foi evoluindo, continua a haver esta primazia por galerias e artistas do continente, abrimos a galerias que também estão fora do continente com arte contemporânea africana no seu programa.

No texto que escrevi para o catálogo* explico melhor o programa curatorial. É um programa vasto e não pretende necessariamente ser um programa afirmativo a dizer “isto é a África”, mas antes dizer que existem estes artistas, são diversos. Pretende-se trazer artistas cuja obra dialogue com as temáticas globais, sair dessa dessa questão mais exótica e de nicho. A partir do momento em que as galerias confirmam a vontade de estar, eu trabalho diretamente com a galeria aquilo que pode ser interessante mostrar.

Que outras ramificações tem o programa?

O programa também se estende para as conversas e para outros cantos da Feira. Por exemplo, este ano o catálogo da Feira tinha textos críticos e reflexivos a abordar questões de publicação e do papel dos catálogos,  e então a Maribel López pediu-me que recomendasse algum especialista que pudesse contribuir com a sua pesquisa. No fundo, para além da curadoria das galerias, acabo por curar um pouco conteúdos que têm a ver com o continente, o que incluiu também conversas. Este ano não quis fazer conversas específicas, mas, em articulação com as temáticas propostas pela Marta Mestre e o Ángel Calvo Ulloa, achámos que não devia haver conversas separadas, então sugeri um nome para uma das talks, o Titos Pelembe e participei noutra. Já tinha abordado isto em outras edições da feira, mas por vezes, por uma questão de tempo, nem sempre foi possível fazer desta forma.

Costumo também fazer sugestões para a secção da ArtesLibris, um pouco mais complexa porque não se trata de uma feira do livro, não há vendas gigantes. Então, muitas vezes, o investimento não compensa. O que tenho proposto é conectar por exemplo alguma pequena editora que opere directamente no continente ou na Europa, com alguma editora que já participa na feira, de modo a haver uma partilha. Este ano, por exemplo, na bancada do Hangar havia livros, havia uma edição especial da TSA (The Sole Adventurer Contemporary Art Magazine), de uma editora nigeriana baseada em Amsterdão, a BukolaOyebode. Ela não poderia vir porque tem uma criança pequena. Então faço essas conexões, trazendo esses conteúdos para a Feira de formas muito diversas.  

Pode destacar algumas obras que ilustrem a sua visão curatorial, e as propostas mais radicais?

Não sei se seria a proposta mais radical, mas posso destacar o espaço da galeria Afronova, que propôs um diálogo intergeracional à volta do arquivo e de forma distintas de ativar os arquivos, com as artistas Owanto e Dimakatho Matsopha. Outras propostas interessantes da Guns N’Rain, uma galeria que também trouxe apenas artistas mulheres que abordam história e a memória pessoal e colectiva, a as histórias transnacionais, trabalhando com pintura, têxteis, performance, etc. Por outro lado, artistas como Edson Chagas e Paulo Kapela. O primeiro, apesar de ter uma carreira consolidada internacionalmente, e até estar a residir em Portugal, é ainda pouco conhecido no circuito mais português e o Kapela, menos conhecido também, embora a sua obra tenha circulado muito durante a década de 90 e com obras nunca vistas em público. Outro artista interessante é o Patrick Tagoe-Turkson trazido pela ArtCo, que tem uma obra mais voltada para questões ecológicas e sustentáveis.

Interessa-me a diversidade de geografias, de técnicas e de discurso; por isso esta é uma curadoria aberta e flexível. É sobre ampliar a presença, mas também a forma e modo de estar presente, e pensar em conteúdos adaptáveis e que façam sentido neste contexto mais amplo. Isto deixa-me totalmente confortável.

 

Como balanço, parece-lhe haver um interesse mais fundamentado e menos exotizado pelo discurso e obra de artistas africanos?

Penso que começa a haver um interesse mais fundamentado e menos exotizado pelos discursos. A própria forma como, este ano, as galerias estiveram na Feira também demonstra isso, assim como as questões e abordagens colocadas pelo público da feira, e pelas conversas geradas. A ideia maior é naturalizar toda aquela presença, e colocar os artistas em diálogo e, nesse sentido, acho que ao longo do tempo tem funcionado. Comercialmente também tem sido bom para as galerias.

Pode comentar a talk da WAAU sobre “Arte Contemporânea Africana: Internacionalização, Representatividade e Poder”, em que participou juntamente com os curadores Alicia Knock, Serubiri Moses e Liz Gomis, com moderação de Ana Balona de Oliveira? 

A WAAU já tinha estado presente na Feira, com o lançamento da plataforma. Este ano, em colaboração com a equipa WAAU, e também da Feira, pensámos em usar a plataforma e o espaço dedicado a esta para criar um evento que fosse mais um fórum e/ou mesa-redonda e que complementasse a ideia da curadoria. Obviamente, no contexto de uma feira e com o pouco tempo que os fóruns têm, é sempre difícil aprofundarmos questões tão imensas como o próprio título da talk. No entanto, foi uma conversa muito produtiva, e foram lançadas e abordadas questões muito pertinentes, sob diversas perspectivas e pontos de vista, por um painel muito bom. Vejo como um gesto inicial e considero que podemos realmente pegar nestas conversas e desenvolvê-las, incluindo outros atores também locais.

 

Vieram trabalhos de artistas que moram no continente e outros nas diásporas. Considera que são muito diferentes as oportunidades de circulação e venda, para quem está ou não na Europa?

Claro que quem reside na Europa, ou quem é representado por galerias europeias, está muito mais dentro de um mercado que circula do que determinados artistas em determinadas galerias no continente. Eu digo determinadas, porque há galerias no continente que nem passam por Portugal, não têm interesse, vão diretamente a Frieze  Londres, vão a Basel e vão à Basal Miami. Portanto, há aqui uma série de circuitos que, muitas vezes, são mais vantajosos para determinadas galerias. Nesse aspeto, é interessante também pensar como é que nestes casos Portugal não é um mercado, mas pode tornar-se um ponto de passagem importante e uma entrada para outros espaços para algumas galerias. Então existe espécie de jogo duplo entre duas periferias que é interessante.

E como foi a participação das galerias, quais são as que tinham arte produzida em África?

Podíamos encontrar nas galerias African Arty de Marrocos, a Afronova e Guns and Rain da África do Sul, a Arte de Gema, moçambicana, a Insofar e a Perve têm portas abertas em Portugal, na parisiense 193 Gallery. A Movart e a This is Not a White Cube existem em Angola e Portugal, mas já não estão na Feira através do programa África in Foco. Estiveram nos primeiros dois anos, e agora participavam já na secção principal. As galerias que convido por dois anos seguidos, passam depois a fazer candidaturas para a secção principal e foram aceites pela secção principal. No fundo, o objetivo do programa é abrir este espaço com algum conhecimento para que depois as galerias andem por si só.

 

*Africa in Foco Arco Lisboa

Paula Nascimento 

África em Foco regressa à Arco Lisboa, expandindo as suas preocupações temáticas. Como se pode colocar o Enfoque em África, no contexto de uma Feira de Arte, sem cair em lugares comuns? Vagamente inspirado no ensaio de Chimamanda Ngozi Adichie “o perigo de uma única história” e no texto “Como escrever sobre a África” de Binyavanga Wainaina, que abordam a questão da visibilidade e dos estereótipos de forma lúdica, a abordagem curatorial é aberta e a-temática. O seu foco é diversificar e desmistificar abordagens para a criação contemporânea no continente em diálogo com as conversas atuais para além (do peso da) geografia. Há galerias de Casablanca à Cidade do Cabo e galerias baseadas na Europa, artistas que vivem e trabalham no e desde o continente e diáspora, cujo trabalho aborda, reflete e confronta a história e os arquivos, questões ambientais, diálogos sul-sul, entre outros. O programa é rizomático, alargando e ligando os espaços da Feira e complementado com a presença em fóruns, a conversa sobre a presença e internacionalização da arte contemporânea africana, livros e revistas, e um programa paralelo de exposições fora da Feira.

Note:

Feature Image: © Osmar Silverio

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